Esperei alguns dias para falar sobre um dos temas que estudei na Holanda e que é muito polêmico aqui no Brasil e no mundo inteiro: a política de drogas do país. Esperei porque acredito que, às vezes, temos que digerir muito as informações por algum tempo para opinar com mais qualidade. O título desse post é a conclusão mais importante que cheguei sobre o assunto.
Primeiro gostaria de desfazer alguns mitos:
1. a Holanda não é um país em que as pessoas fumam maconha em tudo o que é canto e injetam heroina em público como alguns contam. Até concluí que muita gente vai para lá e nem percebe que, tirando as áreas muito turísticas de Amsterdam (Zona da Luz vermelha, por exemplo), os coffee shop são locais super pequenos e discretos. Conheci muitas cidades, foram mais de quinze dias pegando trem, comendo, "trabalhando", indo ao super etc. Definitivamente essa é uma imagem equivocada e distorcida do país. Acredito que essa imagem que alguns acham legal até prejudica o debate franco sobre os avanços que eles conquistaram.
2. Também é mentira que as drogas são legalizadas no país. O tráfico é combatido e o que não é crime é consumir drogas e portar uma quantidade pequena delas. Lá, como aqui depois da nova lei, o tratamento do traficante e do usuário é diferente.
Bem, dito isto, vou compartilhar algumas informações e opiniões com vocês.
1. De onde surge a idéia dos coffee shop, como funciona, quais limites e quais alternativas que eles estão construindo? Como é a política com a MACONHA?
Surge da tentativa de afastar consumidores do tráfico e do crime. Ou seja, não há porque envolver pessoas na rede do crime se essa é uma droga leve. Também da idéia de que se se fuma ali dentro é possível exercer algum controle sobre a qualidade da droga. Isso é importante para a saúde da população pois a maconha só é considerada droga leve (vejam o nível de pesquisa deles) se tiver até 9% de THC. O que tem acontecido hoje é que, com as mudanças genéticas já produzem com até 16% (como aqui misturam com merla, que cria dependência). O impacto disso é brutal. Eles avaliam as drogas sobre diversos prismas. Um deles é o impacto na saúde. Segundo o Ministério da Saúde o consumo de maconha com THC de 16%, por exemplo, está vinculado ao desenvolvimento de diversas doenças psiquiátricas.
Se o tráfico é proíbido como funcionam os cafés? Esse é um dos grandes problemas deles. Pois os donos dos estabelecimentos seguem tendo um vínculo com o crime. Eles tem uma espécie de política de "não estou vendo" mas querem combater esse mal. Como? Uma das alternativas é a proibição de grandes cafés e a autorização para pequenos. Logo, os donos poderiam produzir o fumo e eles teriam maior controle da qualidade.
Há um outro debate implícito nessa discriminalização da maconha que eles tem por lá. Se o mundo do crime é um só, quem pula a cerca que o separa do mundo "da lei", pula novamente. Ou seja, se eu convivo com um traficante para fumar, eu posso conviver para comprar cocaína ou heroína. E eles não querem que as pessoas convivam com essa "pulada de cerca".
Sabe qual é a conclusão mais surpreendente? Eles não tem indíces altos de jovens que fumam maconha. Na tabela européia, por exemplo, eles estão no meio da lista. Menos gente fumando e menos força para o tráfico.
Ou seja, a visibilidade não faz com que as pessoas saiam fumando. E ainda por cima, não mata milhares no tráfico.
2.E as outras drogas? Uma política gigantesca de redução de danos. Qual o conceito? Rede de saúde pronta para atender os dependentes. Conheci as clínicas, os métodos, a legislação de saúde para área. A média de recuperação é de 60%. Posso fazer um outro post só sobre isso pois é incrível. Porém, o mais inovador é o sistema de tratamento de dependentes em heroína.
A Europa, como muitos devem saber, teve um processo semelhante com o que o Brasil vive com o crack com a heroína na década de 90. Chegaram a ter 50 mil dependentes na Holanda (um país com 16 milhões de habitantes). A política de redução de danos é a seguinte: se o sujeito comprova que tentou por pelo menos 3 vezes se livrar da droga e que não teve sucesso, eles permitem que ele a consuma em 15 espaços públicos distribuídos pelo país. Essa droga tem níveis menos "potentes" (segundo pesquisas que eles desenvolvem) e essa pessoa deixa de ter contato com o tráfico. Também reduz todos os danos paralelos ao consumo: é feito uma espécie de procedimento hospitalar, ou seja, não são compartilhadas seringas. O sujeito não vira um criminoso para consumir a droga. Outras coisas como tomar banho, alimentação, acompanhamento psicológico etc são parte da rotina desses espaços. Ali, também o dependente ganha estímulos para deixar de consumir a droga, buscar trabalho, conviver com a família. Ou seja, ele passa a ser um dependente. Uma pessoa doente. Não um criminoso, que é HIV positivo, que não tem casa, família, nada.
Qual o resultado? Uma legião de dependentes em heroína? Não. Hoje eles tem 15 mil dependentes. Menos de 1/3 de uma década atrás (quando a política foi implementada). Redução brutal de violência e criminalidade nas cidades. Ausência de uma legião de pessoas se picando em esquinas, ruas escuras (muitas pessoas que foram para a Holanda na década passada guardam essas imagens do país, já ouvi relatos).
Outro impacto: os jovens não querem consumir a droga, foi quebrado o fetiche. Por que? Porque o estado dos dependentes ganhou visibilidade. Segundo eles me disseram "é a cara da derrota".
Não estou dizendo isso para que a gente pense que temos que copiar tudo igualzinho. Não. Nunca. Política pública não é receita de bolo. Cada país é um país. Cada povo é um povo. Cada sistema é um sistema. Mas é preciso refletir.
Na América Latina, continente que produz drogas, é muito comum o debate sobre drogas ficar no "campo moral". Ou seja, se é certo ou errado consumir. Esse, na minha opinião, não é um caminho que tem nos ajudado. Perdemos milhares de jovens no tráfico, temos muitos viciados em crack, por exemplo. É preciso colocar a saúde da população em primeiro lugar. Esconder problemas não é a solução para nada. Escondemos por décadas a violência contra a mulher, a pedofilia etc. Precisamos dar visibilidade aos problemas. O tráfico é um deles. Os consumidores e dependentes não precisam estar desse lado, apenas para abordar um dos aspectos.
Todo mundo sabe da minha luta para, por exemplo, termos espaços para tratamento de viciados em crack. Mas tenho a convicção de que apenas isto não basta. Precisamos, com calma, tranquilidade, maturidade dar um salto na nossa política de drogas. Precisamos. Temos que construir um caminho nosso, idéias brasileiras para enfrentar o problema que temos aqui que é certamente distinto dos problemas da Holanda. Esses problemas existem e devemos colocar luz neles. Esconder não resolveu e não resolverá.
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Escreverei outros posts sobre os temas que mais dediquei lá (educação e transporte). Aos poucos vou compartilhando com vocês.
2 comentários:
Muito legal e esclarecedor seu post! como usuario velho, que alem do uso recreativo, tb me beneficio dela como auxiliar no tratamento que faço com quimioterapia e outros remédios para inibir uma meningite incurável (paquimenigite), procuro realmente isso: poder portar e usar sem ser considerado criminoso e ter onde comprar longe do tráfico e com controle de qualidade. Em tempo, como medicamento, uso a canabis como vaso dilatador, anti enjôo (redutor dos movimentos peristáticos), relaxante, redutor da pressão intra-craniana e analgésico leve.
É preciso quebrar os tabus retóricos e conservadores para implantação da nova legislação. Precisamos avançar na implantação de CAPS Ad e (re)discutir a lei Paulo Delgado, pois há casos que necessitam da internação, muitas vezes compulsórias.
Leandro Silva
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