Era noite e chovia intensamente no inverno de Porto Alegre. João já beirava aos 65 anos e recebia a todos com o mesmo sorriso discreto nos lábios: "boa noite", repetia, "boa noite, mesa para quantos?!?"
Ele a reconheceu e mostrou todos os brancos dentes ao anunciar: "-Marta! Não havia Te reconhecido! Tudo bem?"
Não. Não estava bem. Ela estava cansada, magoada, com vontade de comer e dormir como os mais primitivos animais. Comer e dormir e comer e dormir e comer...
Comeu. Acendeu o cigarro. Pediu o café. Observa a vida do João "boa noite. Boa noite, mesa para quantos?" Observa a resposta silenciosa de todos que adentram o restaurante. O "Boa noite" de João não tinha resposta! As mulheres, os homens, os mais jovens e os senhores estavam cegos em suas rotinas, em suas fomes, em seus problemas novos que se repetem a cada dia.
Chama João. Rapidamente se desculpa por não ter esticado a tentativa anterior de conversa.
"Sabe Marta, eu lido com cada ser humano aqui que não sei nem que jeito é o certo de olhar, tem gente que nem devo olhar. Sabe há quantos anos eu digo 'boa noite' aqui?! Há três!
Sabe que uns 40% nem respondem? E ainda recebo cada crítica! A mais recente foi um tal de email que mandaram dizendo que eu não era treinado! Sabe porque?!? Porque eu não tinha fogo para a moça acender o cigarro!!! Mas eu sou treinado. Sou treinado sim!!! Sou treinado para dar 'boa noite' e todos os dias repito, umas trezentas vezes, repito 'boa noite'. E eles mesmo com tanto estudo, com tanto conhecimento, com vários aparelhos celulares, eles mesmo tantos treinamentos nunca foram treinados para dar 'boa noite'!"
Marta ficou reflexiva. Fez teses sobre a falta de educação, sobre a futildade média do ser humano, sobre a vida. Pediu outro café, carioca como sempre, fumou outro cigarro, acertou a conta e saiu correndo, para fugir da chuva. Com a pressa de quem foge de sua própria espécie, Marta não conseguiu ouvir o tímido "Boa noite" de João.
sábado, 19 de junho de 2010
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